domingo, 17 de abril de 2016

Guetos Infantis

"Nesta situação complicada para todos, a criança é quem mais sofre. Com ela a compensação económica do dano não funciona. Os serviços e equipamentos públicos, pensados para os adultos, não são bons para a criança. Se lhe tiramos o pequeno espaço para jogar em frente à casa e, de acordo com a lógica da segregação e da especialização, o devolvemos cem vezes mais rico e cem vezes maior a um quilómetro de distância, na realidade estamos retirando à criança esse espaço, e ponto. A um parque afastado pode ir somente se um adulto a levar, portanto, de acordo com os horários do adulto. Pode ir somente no caso de se vestir em condições, se não dá-nos vergonha tirá-la de casa; mas se se veste em condições, não se pode sujar, e se não se pode sujar não se pode jogar. Quem acompanha a criança tem que esperar por ela, e enquanto espera está a tomar conta dela, e sob vigilância não se pode jogar.

 photo frato parque.jpg


Os parques infantis são um exemplo interessante de como os equipamentos foram pensados pelos adultos e para os adultos, não para as crianças, mesmo nos casos em que estas são os seus beneficiários directos.
Estes espaços para as crianças são todos iguais, em todo o mundo, pelo menos no mundo ocidental: cuidadosamente aplanados, cercados e sempre dotados de escorregas, baloiços e cavalinhos.

 photo Cercas2.jpg


O primeiro aparelho que entra em acção para a construção de um jardim ou de um parque infantil é a escavadora. Na ideia dos adultos, é num terreno planinho que as crianças gostam de brincar; mas não é: o espaço horizontal impede-as de se esconderem, que é uma parte importante do jogo, mas facilita a vigilância. A criança deve brincar enquanto é vigiada! Nós os adultos esquecemos que o jogo está vinculado com o prazer, e o prazer não se dá bem com o controlo e a vigilância (pensemos nas nossas experiências de prazer como adultos!).

 photo Cercas3.jpg

Um segundo aspecto é que são os adultos que determinam as brincadeiras que as crianças devem ter nestes espaços. Os equipamentos estão pensados para actividades repetitivas e simples, como escorregar, balançar e dar voltas; desta forma a criança assemelha-se mais a um hamster que a um explorador, um investigador ou um descobridor. São brinquedos para jogos específicos que devem ser usados tal como os adultos idealizaram; e como as crianças se fartam facilmente, para inventar novas brincadeiras começam a usá-los de forma diferente, pouco ortodoxa, tornando-os mais perigosos: saltar dos cavalinhos em movimento, descer pelo escorrega de cabeça, balançar-se pendurado por uma só corda do baloiço (como os piratas numa abordagem) ou pendurado com a cabeça para baixo.

 photo Cercas4.jpg

Os parques infantis são todos iguais porque representam um estereótipo: a presença de escorregas, baloiços e cavalinhos garante que o adulto-pai se aperceba facilmente que o adulto-político utilizou o dinheiro público para construir um equipamento para o seu filho. Que as crianças gostem dele ou não importa pouco."

Francesco Tonucci, A cidade das crianças
 photo frato_11.jpg

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Futurama 1939

Breve história do séc. XX




Vídeo de propaganda da GM para a Feira Internacional de 1939, onde dá a conhecer a sua utopia. Um país ligado por auto-estradas, que atravessam as cidades, sempre com "segurança - mas com maior velocidade", nem que para isso fosse necessário arrasar quarteirões inteiros. É preciso reconhecer que atingiram o objectivo de criar um sociedade dependente do automóvel. Só que como qualquer utopia, nunca são mencionadas as externalidades negativas. E como qualquer visão do futuro, assenta em pressupostos que, tidos como correctos à época, hoje são até caricatos.


O vídeo (a partir dos 8:00) apresenta uma visão do mundo em 1960. Começa por fazer a descrição de um espaço rural belo, puro, a simbiose perfeita entre o homem, a ciência e a natureza, sob a graça de Deus. Um grande celeiro imune a doenças e superprodutivo. Claro que as produções agrícolas precisam de ser escoadas e para isso serão necessárias grandes auto-estradas que liguem as comunidades rurais aos grandes centros de distribuição e consumo. Estradas desenhadas para um grande volume de tráfego e a grande velocidade – “velocidade, mas com segurança!”. As intersecções entre auto-estradas devem permitir uma velocidade elevada constante, com recurso a grandes obras da engenharia, loops, nós, viadutos elevados ou túneis.


E para onde mais podemos nós conduzir? Um grande parque de diversões. Conduza para se alienar. “O progresso humano trouxe novas possibilidades de diversão e recreação!”. Onde? Num espaço segregado, fora da cidade, onde é necessário conduzir para lá chegar.


Mais uns minutos de contemplação de auto-estradas suspensas entre precipícios, onde os automóveis circulam a grande velocidade, mas sempre com “segurança – segurança com uma maior velocidade!”, com recurso ao controlo da distância entre veículo através das ondas de rádio.

Estradas, pontes e túneis rasgam as montanhas, permitindo o famoso “enquadramento cénico” da paisagem desde um automóvel em movimento. Ao fundo, no vale, um resort pitoresco. Que é como quem diz, mais um espaço segregado, neste caso de artificialização do espaço natural e/ou da cultura local. Tudo isto alimentado pela energia de barragens gigantes. As estradas atravessam também as barragens e, suprimindo as viagens cansativas, as vantagens de morar numa pequena cidade estão ao alcance de todos, permitindo que as pessoas que aí vivem tenham uma relação próxima com o mundo em redor.


“O homem começou a reclamar vitória sobre o espaço”.


“Espaço para viver. Espaço para trabalhar. Mais espaço disponível para mais pessoas do que nunca”, através do automóvel e auto-estradas. E como é que se elimina a congestão do tráfego? Em 1939 a solução da GM era:
“Over a spectacular suspension bridge the motorway enters a large city spanning the navigable river on which it is situated, and forming a gateway to the city. A feature of this bridge is the elimination of congestion and the elimination of interference from all the various converging motorways and from all the feeder roads. And now we see a great river city of 1960.”


O problema é que passado uns anos foi necessário mais uma ponte. Depois outra. Alargar as existente. Fly-overs. O automóvel nunca está satisfeito e ocupa todas as faixas e todas as estradas que construírem. E depois precisa de ser estacionado.

Mas estávamos em 1939 e eles não sabiam disto.


A descrição da utópica River City continua. Uma cidade de 1 milhão de pessoas, mais larga, redesenhada e reconstruída. “Espaços residenciais, espaços comerciais e áreas industriais, tudo devidamente segregado, para uma maior eficiência e conveniência”.


Fools!...


“Aqui está uma cidade americana planeada à volta do sistema de mobilidade altamente desenvolvido.”

Os espaços verdes têm continuidade entre si, cercando cada comunidade. Ao longo de ambas as margens do rio, bonitos parques e intervenções paisagísticas substituem os espaços de outrora.

O direito a deslocar-se está tão enraizado como deslocar empresas e negócios fora de moda e bairro pobres indesejados, sempre que possível. “O homem continuamente procura substituir o velho pelo novo!”.


A cidade de 1960: Ar puro, bonitos parques verdes, centros cívicos e de recreação.
“Planeamento urbano moderno e eficiente. Arquitectura de tirar o fôlego. Cada quarteirão é uma unidade completa”. Uma cidade em cada edifício. Virar a sociedade para os espaços interiores, privados.

1939


Claro que as pessoas necessitam de se deslocar entre estas ilhas. Como? “Here is an important intersection in the great metropolis of 1960. Elevated sidewalks give a new measure of safety and convenience to pedestrians. They actually double the available width for traffic in the street”. Passeios elevados, como nova medida de segurança e conveniência para os pedestres. Com esta medida até se consegue duplicar o espaço disponível para mais… automóveis na estrada!
“We see some suggestions of the things to come.  A world that far from being finished has hardly yet begun. A world with a future in which all of us are tremendously interested - because that is where we are going to spend the rest of our lives. A future which can be whatever we propose to make it. True - each of us has different ideas as to what that future will be - but every forward outlook reminds us that all the highways of all research and all communications - all the activities of science, lead us onward to better methods of doing things - with new opportunities for employment - and better ways of living. As we go on, determined to unfold the constantly greater possibilities of the world of tomorrow. As we move more and more rapidly forward, penetrating new horizons in the spirit of individual enterprise in the great American way.”