terça-feira, 18 de agosto de 2015

Calçada portuguesa: a banalização da arte e a arte da banalização

A polémica surgiu tonitruante: querem destruir a calçada portuguesa! Opiniões inflamadas de todos os quadrantes, entre urbanistas, arquitectos, historiadores, anónimos, logo se ergueram. Os comentadores de serviço, com a habitual douta sabedoria de quem sobre tudo sabe, pistoleiros da opinião, depressa apareceram para dissertarem sobre o tema. Como não poderia deixar de ser, não tardaram as petições públicas e as manifestações contra tamanho atentado ao património e cultura nacional.

Assente a poeira, afastado o (i)mediatismo do espectáculo noticioso, o tema depressa se perdeu na espuma dos dias. Como quase sempre acontece, o alarido inicial deu lugar a um debate mais consciente e informado. Afinal, a proposta da Câmara Municipal de Lisboa fazia parte do Plano de Acessibilidade para a cidade, por sinal um documento bastante elogiado por diversas entidades nacionais e internacionais, tornando-se uma referência no que às boas práticas em matéria de acessibilidades diz respeito. E como se viu, o “querem acabar com a calçada portuguesa” estava muito longe da proposta que consta do documento.

Vamos a factos: a calçada portuguesa é um símbolo nacional, um elemento cultural emblemático e reconhecido internacionalmente. Com excepção do Brasil e das ex-colónias, onde ainda é mantida, sendo um dos últimos elementos distintivos do império, apenas aqui se calceta. Embora parente pobre de outras artes e apesar de os seus profissionais não terem o mesmo estatuto e reconhecimento que outros artistas, é indiscutível o seu valor patrimonial. A calçada portuguesa é uma das razões apontadas para a aclamada “luz de Lisboa”. Os padrões decorativos formados pelo contraste cromático quebram a monotonia dos espaços e contribuem para a sua singularidade.

Por tudo isto, a calçada portuguesa deve ser protegida – deve ser, em primeiro lugar, executada por profissionais qualificados e que vejam reconhecida a excelência do seu trabalho (antes de mais, na sua remuneração), tal como os acérrimos defensores do alto valor artístico da calçada sustentam, de forma a manterem um nível mínimo de coerência na sua argumentação; Deve ser colocada através da forma tradicional, permitindo a permeabilização do solo; Deve preservar a sucessão de padrões cromáticos, em vez de consistir na pobreza de sucessivas pedras irregulares monocromáticas. Mas, sobretudo, deve ser reservada aos espaços nobres da cidade, pois uma obra de arte não merece outra coisa que não um espaço condigno, emblemático, capaz de ser valorizada pelo enquadramento.

Infelizmente, os arquitectos portugueses continuam a trilhar o caminho das pedras, usando e abusando da sua aplicação em locais inadequados. A banalização da calçada em tudo o que é espaço pedonal acaba por retirar o simbolismo a esta forma de arte. E ainda mais grave, coloca sérios obstáculos à acessibilidade pedonal, impondo a forma à função.

O espaço público pedonal não é um museu a céu aberto – é um espaço onde as pessoas precisam de circular com conforto e segurança, que não se coaduna, na grande maioria dos espaços citadinos, com um tipo de pavimento inventado no séc. XIX. O (suposto) valor estético não pode ser mais importante que a mobilidade e segurança dos idosos, das pessoas que se deslocam em cadeiras de rodas, dos pais com carrinhos de bebé, das mulheres com salto alto. A insistência na colocação deste pavimento arcaico e obsoleto em ruas declivosas, acompanhada pela escorrência de águas pluviais e o polimento natural das pedras, ainda mais quando colocadas sob determinadas espécies de árvores, propicia quedas que, no caso dos idosos, poderão ter consequências bastante graves. A calçada é um pavimento que requer uma manutenção constante, cara e especializada. Facilmente surgem pedras soltas, buracos e descontinuidades na calçada, problema agravado pela epidemia dos automóveis estacionados nos passeios (pasme-se o silêncio e cumplicidade dos defensores da calçada perante este atentado real à sua integridade), pelas raízes dos elementos arbóreos ou pelas constantes intervenções técnicas nas redes de iluminação pública, de telecomunicações, de energia e outras.

O paradoxo perfeito da inutilidade da calçada é facilmente observável quando vemos peões a circular, intuitivamente, pela berma da estrada, pois esta tem um piso regular, confortável e seguro, mais favorável à sua locomoção. Assim, temos km de espaço, porventura bonito, mas inútil, a que se juntam mais km construídos todos os anos em novos projectos de suposta requalificação urbana, que mais não fazem que perpetuar a ineficiência e insegurança do espaço público. É urgente abandonar paradigmas amarrados a saudosismos, evitar os erros cometidos no passado e construir passeios que cumpram a sua função: ser acessíveis a todos.

Defender a calçada não passa apenas pela defesa do seu valor estético e do seu método de construção. Defender a calçada não passa por palavras de circunstância e petições românticas. Defender a calçada não passa pela sua utilização ad nauseum em qualquer lugar e sem qualquer tipo de critério e coerência. Defender a calçada é impedir que esta colida com a Lei nº46/2006, que proíbe e pune a descriminação em razão da deficiência. Numa época em que se multiplicam as requalificações de monumentos e sítios de forma a garantir a acessibilidade de todos, defender a calçada enquanto património passa por garantir que esta não constitui um elemento de exclusão social. Defender a calçada é garantir que esta faça parte de projectos pensados para as pessoas e que estes não se esgotem no desenho do plano.


Um bem patrimonial, à partida, representa a herança cultural de um povo e só terá valor se houver um reconhecimento colectivo do seu valor. Mas não terá qualquer valor se for um factor de exclusão desse mesmo povo. A calçada, em particular a calçada portuguesa, deve ser preservada, sim. Mas não a qualquer preço.

in Correio de Albergaria

sábado, 15 de agosto de 2015

Por uma cidade para as crianças

As aglomerações urbanas – e as nossas, à sua escala, não são excepção – cresceram desmesuradamente e de forma desordenada nas últimas décadas. A função social do solo foi quase completamente negligenciada devido à ganância da especulação imobiliária, da ignorância, até por vezes criminosa, de quem deveria salvaguardar o interesse público, da ineficácia de uma política de solos obsoleta e de uma administração pública burocrática e demasiadas vezes refém de interesses económicos. As cidades deixaram de ser planeadas como um espaço comunitário, palco da vida social e política, para serem construídas como um aglomerado de infinitas individualidades, através da primazia dos espaços privados e do desenho urbano subordinado ao automóvel.

Nas cidades contemporâneas escasseiam os espaços comuns, as praças, as alamedas, muitas vezes até o passeio à porta de casa. A vida social enclausurou-se dentro do lar, sinal talvez do individualismo da sociedade actual. Os espaços das vivências colectivas tornaram-se repulsivos, em particular para as minorias que a ele têm mais dificuldade em aceder, sejam os deficientes motores, os idosos ou as crianças. Estas, que antes faziam da rua o parque de jogos do seu imaginário, já não a conhecem. Seja por medos infundamentados de uma criminalidade exagerada pela comunicação social, pela insegurança que o tráfego rodoviário induz, pela moda recente de uma mercantilização do brincar, com os seus espaços e tempos próprios e restritos, ou por um uso excessivo, muitas vezes promovido pelos pais, dos computadores e da televisão, as crianças já não ocupam o espaço que deveria ser também delas - e as poucas que o fazem são olhadas como um protótipo de delinquência.

A relação que a maioria das crianças tem com a cidade, enquanto espaço físico e social, é bastante diferente das gerações anteriores. Já não exploram o bairro, não se aventuram pelos caminhos e atalhos fora da sua zona de conforto, não satisfazem a curiosidade de saber o que está do outro lado do muro. Conduzidas para todo o lado no banco traseiro de um automóvel, não desenvolvem o seu sentido de orientação, não reconhecem os códigos e símbolos que organizam e dão identidade à polis, nem são confrontadas com os conflitos inerentes ao espaço urbano. O défice de actividade física na rua transforma-as em analfabetas motoras, com dificuldades em correr e saltar, em perceber e apreender a mecânica do seu corpo e a relação com o que o rodeia. A sedentarização das crianças é também das principais causas de obesidade infantil, que muitos já consideram a epidemia deste século e será, no futuro e pela primeira vez na história da humanidade, responsável pela diminuição da esperança média de vida. Além destas, o brincar tem também repercussões no desenvolvimento da criança enquanto ser social e emocional, pois é através dos jogos, com outras crianças e sem controlo de um adulto, que aprende a gerir os conflitos no grupo, a assimilar e aceitar a diferença, a reagir perante o confronto e a retirar benefícios da cooperação.

Mudar um caminho que a sociedade vem trilhando há décadas não se afigura fácil. São necessárias mudanças no seio da organização familiar, apenas possíveis com a flexibilização dos horários laborais e do mercado de trabalho. É necessário conceber uma escola diferente, menos enciclopédica do saber e com mais abertura à criatividade e à comunidade, com menos horas de reclusão em salas de aula. E acima de tudo, é necessário pensar o espaço urbano de forma totalmente oposta àquela que tem feito escola no nosso país, para permitir o acesso de todos em segurança e conforto, em particular as crianças, para que estas sejam crianças. Os espaços públicos precisam de recuperar a dignidade e centralidade que perderam, para que as ruas sejam de novo o palco privilegiado da vida social e não meros espaços condutores de fluxos de tráfego. Para que isto se torne realidade é fundamental retirar o automóvel do pedestal em que foi colocado pelos urbanistas do século passado, diminuir a sua velocidade de circulação e humanizar a rua através de um design dos arruamentos mais atrativo para os peões e desconfortável para os veículos. O excesso de estacionamento, que mais não é que um enorme desperdício de espaço na maioria das situações, porque desproporcionado face à procura ou alternativas existentes, deve dar lugar à calçada, a espaços de fruição, de encontro, de arte e de jogos. O denominador comum a estas e outras medidas assenta num urbanismo de proximidade, sustentado por uma estratégia multissectorial e por regulamentos e planos urbanísticos que promovam uma maior densidade habitacional e se oponham à dispersão de serviços e equipamentos pelo território. Uma maior densidade humana, com vínculos mais profundos ao meio e laços de vizinhança mais intensos, além de beneficiar o comércio tradicional e a segurança urbana, contribui para uma maior utilização dos modos suaves, ou seja, o uso da bicicleta e a mobilidade pedonal, da qual as crianças são, obviamente, as principais beneficiadas.

As cidades moldam os seus habitantes. Assim, uma cidade que proporcione um crescimento saudável à criança, que permita o seu desenvolvimento motor, social e emocional, será uma cidade que, no futuro, terá adultos saudáveis, criativos, críticos e com vínculos afectivos ao espaço que habitam. Logo, com maior predisposição para o preservar e valorizar. Não será possível ambicionar resultados diferentes ao nível da inclusão e da coesão social continuando a adoptar as práticas recentes, com estratégias de curto prazo que beneficiam apenas as classes dominantes. Neste sentido, torna-se urgente o desenvolvimento de um planeamento estratégico que consiga, através das ações presentes, moldar a sociedade do futuro.

in Correio de Albergaria