As
aglomerações urbanas – e as nossas, à sua escala, não são excepção – cresceram
desmesuradamente e de forma desordenada nas últimas décadas. A função social do
solo foi quase completamente negligenciada devido à ganância da especulação
imobiliária, da ignorância, até por vezes criminosa, de quem deveria
salvaguardar o interesse público, da ineficácia de uma política de solos
obsoleta e de uma administração pública burocrática e demasiadas vezes refém de
interesses económicos. As cidades deixaram de ser planeadas como um espaço
comunitário, palco da vida social e política, para serem construídas como um
aglomerado de infinitas individualidades, através da primazia dos espaços
privados e do desenho urbano subordinado ao automóvel.
Nas cidades contemporâneas escasseiam os
espaços comuns, as praças, as alamedas, muitas vezes até o passeio à porta de
casa. A vida social enclausurou-se dentro do lar, sinal talvez do
individualismo da sociedade actual. Os espaços das vivências colectivas
tornaram-se repulsivos, em particular para as minorias que a ele têm mais
dificuldade em aceder, sejam os deficientes motores, os idosos ou as crianças.
Estas, que antes faziam da rua o parque de jogos do seu imaginário, já não a
conhecem. Seja por medos infundamentados de uma criminalidade exagerada pela comunicação
social, pela insegurança que o tráfego rodoviário induz, pela moda recente de
uma mercantilização do brincar, com os seus espaços e tempos próprios e
restritos, ou por um uso excessivo, muitas vezes promovido pelos pais, dos
computadores e da televisão, as crianças já não ocupam o espaço que deveria ser
também delas - e as poucas que o fazem são olhadas como um protótipo de
delinquência.
A
relação que a maioria das crianças tem com a cidade, enquanto espaço físico e
social, é bastante diferente das gerações anteriores. Já não exploram o bairro,
não se aventuram pelos caminhos e atalhos fora da sua zona de conforto, não
satisfazem a curiosidade de saber o que está do outro lado do muro. Conduzidas
para todo o lado no banco traseiro de um automóvel, não desenvolvem o seu sentido
de orientação, não reconhecem os códigos e símbolos que organizam e dão
identidade à polis, nem são confrontadas com os conflitos inerentes ao espaço
urbano. O défice de actividade física na rua transforma-as em analfabetas
motoras, com dificuldades em correr e saltar, em perceber e apreender a mecânica
do seu corpo e a relação com o que o rodeia. A sedentarização das crianças é
também das principais causas de obesidade infantil, que muitos já consideram a
epidemia deste século e será, no futuro e pela primeira vez na história da
humanidade, responsável pela diminuição da esperança média de vida. Além
destas, o brincar tem também repercussões no desenvolvimento da criança
enquanto ser social e emocional, pois é através dos jogos, com outras crianças
e sem controlo de um adulto, que aprende a gerir os conflitos no grupo, a
assimilar e aceitar a diferença, a reagir perante o confronto e a retirar
benefícios da cooperação.
Mudar
um caminho que a sociedade vem trilhando há décadas não se afigura fácil. São necessárias
mudanças no seio da organização familiar, apenas possíveis com a flexibilização
dos horários laborais e do mercado de trabalho. É necessário conceber uma
escola diferente, menos enciclopédica do saber e com mais abertura à criatividade
e à comunidade, com menos horas de reclusão em salas de aula. E acima de tudo,
é necessário pensar o espaço urbano de forma totalmente oposta àquela que tem
feito escola no nosso país, para permitir o acesso de todos em segurança e
conforto, em particular as crianças, para que estas sejam crianças. Os espaços
públicos precisam de recuperar a dignidade e centralidade que perderam, para
que as ruas sejam de novo o palco privilegiado da vida social e não meros
espaços condutores de fluxos de tráfego. Para que isto se torne realidade é
fundamental retirar o automóvel do pedestal em que foi colocado pelos
urbanistas do século passado, diminuir a sua velocidade de circulação e
humanizar a rua através de um design dos arruamentos mais atrativo para os
peões e desconfortável para os veículos. O excesso de estacionamento, que mais
não é que um enorme desperdício de espaço na maioria das situações, porque
desproporcionado face à procura ou alternativas existentes, deve dar lugar à
calçada, a espaços de fruição, de encontro, de arte e de jogos. O denominador
comum a estas e outras medidas assenta num urbanismo de proximidade, sustentado
por uma estratégia multissectorial e por regulamentos e planos urbanísticos que
promovam uma maior densidade habitacional e se oponham à dispersão de serviços
e equipamentos pelo território. Uma maior densidade humana, com vínculos mais
profundos ao meio e laços de vizinhança mais intensos, além de beneficiar o
comércio tradicional e a segurança urbana, contribui para uma maior utilização dos
modos suaves, ou seja, o uso da bicicleta e a mobilidade pedonal, da qual as
crianças são, obviamente, as principais beneficiadas.
As
cidades moldam os seus habitantes. Assim, uma cidade que proporcione um
crescimento saudável à criança, que permita o seu desenvolvimento motor, social
e emocional, será uma cidade que, no futuro, terá adultos saudáveis, criativos,
críticos e com vínculos afectivos ao espaço que habitam. Logo, com maior
predisposição para o preservar e valorizar. Não será possível ambicionar
resultados diferentes ao nível da inclusão e da coesão social continuando a
adoptar as práticas recentes, com estratégias de curto prazo que beneficiam
apenas as classes dominantes. Neste sentido, torna-se urgente o desenvolvimento
de um planeamento estratégico que consiga, através
das ações presentes, moldar a sociedade do futuro.
in Correio de Albergaria
in Correio de Albergaria
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