sábado, 15 de agosto de 2015

Por uma cidade para as crianças

As aglomerações urbanas – e as nossas, à sua escala, não são excepção – cresceram desmesuradamente e de forma desordenada nas últimas décadas. A função social do solo foi quase completamente negligenciada devido à ganância da especulação imobiliária, da ignorância, até por vezes criminosa, de quem deveria salvaguardar o interesse público, da ineficácia de uma política de solos obsoleta e de uma administração pública burocrática e demasiadas vezes refém de interesses económicos. As cidades deixaram de ser planeadas como um espaço comunitário, palco da vida social e política, para serem construídas como um aglomerado de infinitas individualidades, através da primazia dos espaços privados e do desenho urbano subordinado ao automóvel.

Nas cidades contemporâneas escasseiam os espaços comuns, as praças, as alamedas, muitas vezes até o passeio à porta de casa. A vida social enclausurou-se dentro do lar, sinal talvez do individualismo da sociedade actual. Os espaços das vivências colectivas tornaram-se repulsivos, em particular para as minorias que a ele têm mais dificuldade em aceder, sejam os deficientes motores, os idosos ou as crianças. Estas, que antes faziam da rua o parque de jogos do seu imaginário, já não a conhecem. Seja por medos infundamentados de uma criminalidade exagerada pela comunicação social, pela insegurança que o tráfego rodoviário induz, pela moda recente de uma mercantilização do brincar, com os seus espaços e tempos próprios e restritos, ou por um uso excessivo, muitas vezes promovido pelos pais, dos computadores e da televisão, as crianças já não ocupam o espaço que deveria ser também delas - e as poucas que o fazem são olhadas como um protótipo de delinquência.

A relação que a maioria das crianças tem com a cidade, enquanto espaço físico e social, é bastante diferente das gerações anteriores. Já não exploram o bairro, não se aventuram pelos caminhos e atalhos fora da sua zona de conforto, não satisfazem a curiosidade de saber o que está do outro lado do muro. Conduzidas para todo o lado no banco traseiro de um automóvel, não desenvolvem o seu sentido de orientação, não reconhecem os códigos e símbolos que organizam e dão identidade à polis, nem são confrontadas com os conflitos inerentes ao espaço urbano. O défice de actividade física na rua transforma-as em analfabetas motoras, com dificuldades em correr e saltar, em perceber e apreender a mecânica do seu corpo e a relação com o que o rodeia. A sedentarização das crianças é também das principais causas de obesidade infantil, que muitos já consideram a epidemia deste século e será, no futuro e pela primeira vez na história da humanidade, responsável pela diminuição da esperança média de vida. Além destas, o brincar tem também repercussões no desenvolvimento da criança enquanto ser social e emocional, pois é através dos jogos, com outras crianças e sem controlo de um adulto, que aprende a gerir os conflitos no grupo, a assimilar e aceitar a diferença, a reagir perante o confronto e a retirar benefícios da cooperação.

Mudar um caminho que a sociedade vem trilhando há décadas não se afigura fácil. São necessárias mudanças no seio da organização familiar, apenas possíveis com a flexibilização dos horários laborais e do mercado de trabalho. É necessário conceber uma escola diferente, menos enciclopédica do saber e com mais abertura à criatividade e à comunidade, com menos horas de reclusão em salas de aula. E acima de tudo, é necessário pensar o espaço urbano de forma totalmente oposta àquela que tem feito escola no nosso país, para permitir o acesso de todos em segurança e conforto, em particular as crianças, para que estas sejam crianças. Os espaços públicos precisam de recuperar a dignidade e centralidade que perderam, para que as ruas sejam de novo o palco privilegiado da vida social e não meros espaços condutores de fluxos de tráfego. Para que isto se torne realidade é fundamental retirar o automóvel do pedestal em que foi colocado pelos urbanistas do século passado, diminuir a sua velocidade de circulação e humanizar a rua através de um design dos arruamentos mais atrativo para os peões e desconfortável para os veículos. O excesso de estacionamento, que mais não é que um enorme desperdício de espaço na maioria das situações, porque desproporcionado face à procura ou alternativas existentes, deve dar lugar à calçada, a espaços de fruição, de encontro, de arte e de jogos. O denominador comum a estas e outras medidas assenta num urbanismo de proximidade, sustentado por uma estratégia multissectorial e por regulamentos e planos urbanísticos que promovam uma maior densidade habitacional e se oponham à dispersão de serviços e equipamentos pelo território. Uma maior densidade humana, com vínculos mais profundos ao meio e laços de vizinhança mais intensos, além de beneficiar o comércio tradicional e a segurança urbana, contribui para uma maior utilização dos modos suaves, ou seja, o uso da bicicleta e a mobilidade pedonal, da qual as crianças são, obviamente, as principais beneficiadas.

As cidades moldam os seus habitantes. Assim, uma cidade que proporcione um crescimento saudável à criança, que permita o seu desenvolvimento motor, social e emocional, será uma cidade que, no futuro, terá adultos saudáveis, criativos, críticos e com vínculos afectivos ao espaço que habitam. Logo, com maior predisposição para o preservar e valorizar. Não será possível ambicionar resultados diferentes ao nível da inclusão e da coesão social continuando a adoptar as práticas recentes, com estratégias de curto prazo que beneficiam apenas as classes dominantes. Neste sentido, torna-se urgente o desenvolvimento de um planeamento estratégico que consiga, através das ações presentes, moldar a sociedade do futuro.

in Correio de Albergaria

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