A
polémica surgiu tonitruante: querem destruir a calçada portuguesa! Opiniões
inflamadas de todos os quadrantes, entre urbanistas, arquitectos,
historiadores, anónimos, logo se ergueram. Os comentadores de serviço, com a
habitual douta sabedoria de quem sobre tudo sabe, pistoleiros da opinião,
depressa apareceram para dissertarem sobre o tema. Como não poderia deixar de
ser, não tardaram as petições públicas e as manifestações contra tamanho
atentado ao património e cultura nacional.
Assente
a poeira, afastado o (i)mediatismo do espectáculo noticioso, o tema depressa se
perdeu na espuma dos dias. Como quase sempre acontece, o alarido inicial deu
lugar a um debate mais consciente e informado. Afinal, a proposta da Câmara
Municipal de Lisboa fazia parte do Plano de Acessibilidade para a cidade, por
sinal um documento bastante elogiado por diversas entidades nacionais e
internacionais, tornando-se uma referência no que às boas práticas em matéria
de acessibilidades diz respeito. E como se viu, o “querem acabar com a calçada
portuguesa” estava muito longe da proposta que consta do documento.
Vamos
a factos: a calçada portuguesa é um símbolo nacional, um elemento cultural
emblemático e reconhecido internacionalmente. Com excepção do Brasil e das
ex-colónias, onde ainda é mantida, sendo um dos últimos elementos distintivos
do império, apenas aqui se calceta. Embora parente pobre de outras artes e
apesar de os seus profissionais não terem o mesmo estatuto e reconhecimento que
outros artistas, é indiscutível o seu valor patrimonial. A calçada portuguesa é
uma das razões apontadas para a aclamada “luz de Lisboa”. Os padrões
decorativos formados pelo contraste cromático quebram a monotonia dos espaços e
contribuem para a sua singularidade.
Por
tudo isto, a calçada portuguesa deve ser protegida – deve ser, em primeiro
lugar, executada por profissionais qualificados e que vejam reconhecida a
excelência do seu trabalho (antes de mais, na sua remuneração), tal como os
acérrimos defensores do alto valor artístico da calçada sustentam, de forma a
manterem um nível mínimo de coerência na sua argumentação; Deve ser colocada
através da forma tradicional, permitindo a permeabilização do solo; Deve
preservar a sucessão de padrões cromáticos, em vez de consistir na pobreza de
sucessivas pedras irregulares monocromáticas. Mas, sobretudo, deve ser
reservada aos espaços nobres da cidade, pois uma obra de arte não merece outra
coisa que não um espaço condigno, emblemático, capaz de ser valorizada pelo
enquadramento.
Infelizmente,
os arquitectos portugueses continuam a trilhar o caminho das pedras, usando e
abusando da sua aplicação em locais inadequados. A banalização da calçada em
tudo o que é espaço pedonal acaba por retirar o simbolismo a esta forma de
arte. E ainda mais grave, coloca sérios obstáculos à acessibilidade pedonal,
impondo a forma à função.
O
espaço público pedonal não é um museu a céu aberto – é um espaço onde as
pessoas precisam de circular com conforto e segurança, que não se coaduna, na
grande maioria dos espaços citadinos, com um tipo de pavimento inventado no
séc. XIX. O (suposto) valor estético não pode ser mais importante que a mobilidade
e segurança dos idosos, das pessoas que se deslocam em cadeiras de rodas, dos
pais com carrinhos de bebé, das mulheres com salto alto. A insistência na
colocação deste pavimento arcaico e obsoleto em ruas declivosas, acompanhada pela
escorrência de águas pluviais e o polimento natural das pedras, ainda mais
quando colocadas sob determinadas espécies de árvores, propicia quedas que, no
caso dos idosos, poderão ter consequências bastante graves. A calçada é um
pavimento que requer uma manutenção constante, cara e especializada. Facilmente
surgem pedras soltas, buracos e descontinuidades na calçada, problema agravado
pela epidemia dos automóveis estacionados nos passeios (pasme-se o silêncio e
cumplicidade dos defensores da calçada perante este atentado real à sua
integridade), pelas raízes dos elementos arbóreos ou pelas constantes
intervenções técnicas nas redes de iluminação pública, de telecomunicações, de
energia e outras.
O
paradoxo perfeito da inutilidade da calçada é facilmente observável quando vemos
peões a circular, intuitivamente, pela berma da estrada, pois esta tem um piso
regular, confortável e seguro, mais favorável à sua locomoção. Assim, temos km
de espaço, porventura bonito, mas inútil, a que se juntam mais km construídos
todos os anos em novos projectos de suposta requalificação urbana, que mais não
fazem que perpetuar a ineficiência e insegurança do espaço público. É urgente
abandonar paradigmas amarrados a saudosismos, evitar os erros cometidos no
passado e construir passeios que cumpram a sua função: ser acessíveis a todos.
Defender
a calçada não passa apenas pela defesa do seu valor estético e do seu método de
construção. Defender a calçada não passa por palavras de circunstância e
petições românticas. Defender a calçada não passa pela sua utilização ad nauseum em qualquer lugar e sem
qualquer tipo de critério e coerência. Defender a calçada é impedir que esta
colida com a Lei nº46/2006, que proíbe e pune a descriminação em razão da
deficiência. Numa época em que se multiplicam as requalificações de monumentos
e sítios de forma a garantir a acessibilidade de todos, defender a calçada
enquanto património passa por garantir que esta não constitui um elemento de
exclusão social. Defender a calçada é garantir que esta faça parte de projectos
pensados para as pessoas e que estes não se esgotem no desenho do plano.
Um
bem patrimonial, à partida, representa a herança cultural de um povo e só terá
valor se houver um reconhecimento colectivo do seu valor. Mas não terá qualquer
valor se for um factor de exclusão desse mesmo povo. A calçada, em particular a
calçada portuguesa, deve ser preservada, sim. Mas não a qualquer preço.
in Correio de Albergaria
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