O movimento occupy
pode marcar o início de uma nova era de levantamentos urbanos. David Harvey
explica porquê.
Desde Paris
em 1871, Praga em 1968, até ao Cairo em 2011, e eventualmente as ruas de Nova
Iorque, as cidades sempre foram um viveiro de movimentos radicais. Os
protestos urbanos foram, ao longo de décadas, motivados pelo desemprego,
escassez de alimentos, privatizações e corrupção. Mas terão sido também
causados pela geografia das próprias cidades?
O seu novo
livro Rebel Cities: From the Right to the City to the Urban Revolution, disseca
os efeitos da política financeira do mercado livre sobre a vida urbana, a
dívida incapacitante dos norte-americanos de
médios e baixos rendimento e como o desenvolvimento descontrolado destruiu o
espaço comum dos habitantes da cidade.
Começando com
a questão: “Como é que se organiza uma cidade inteira?”, Harvey analisa a forma
como a atual crise de crédito teve a sua raiz no desenvolvimento urbano e
como este tornou virtualmente impossivel qualquer tipo de planeamento urbano
nas cidades norte-americanas, nos últimos 20 anos. Harvey está na vanguarda do
movimento pelo “direito à cidade,” a ideia de que os cidadãos devem ter uma
palavra a dizer na forma como as suas
cidades são desenvolvidas e organizadas. Inspirando-se na Comuna de Paris de
1871, quando a totalidade da cidade de Paris derrubou a aristocra- cia para
tomar o poder, Harvey descreve onde as cidades organizaram, poderiam ou
deveriam organizar-se de forma mais sã e inclusiva.
Nesta
entrevista, Harvey fala sobre o Movimento “Occupy Wall Street” (OWS), a
destrutividade do desenvolvimento de Bloomberg na cidade de Nova Oorque, e
sobre como tornar a cidade em algo mais próximo dos nossos desejos.
Você descreve o
“direito à cidade” como um slogan vazio. Mas o que é que significa?
Todos podem
reivindicar o direito à cidade. Bloomberg tem direito à cidade. Mas as diversas
fações existentes na cidade possuem diferentes capacidades de exercer esse
direito. Então, quando eu falo sobre o direito de transformar a cidade de
acordo com os nossos desejos, o que vimos em Nova Iorque, nos últimos 20-30
anos, tem sido de acordo com os desejos dos ricos. Nos anos 71 90, os irmãos
Rockefeller, por exemplo, eram dos mais poderosos. Agora temos pessoas como
Bloomberg, que essencialmente fazem a cidade da forma mais conveniente para
eles e para os seus negócios. Mas a maioria da população não tem qualquer
influência sobre este processo. Existem cerca de um milhão de pessoas nesta
cidade que tentam sobreviver com 10 mil dólares por ano. Que influência têm
sobre o tipo de cidade que está a ser contruído? Nenhuma.
A minha
preocupação em relação ao direito à cidade não é a de dizer que existe uma
forma ética de fazer as coisas, mas a de que existe algo que é objeto de dispu-
ta. Que direito? Para fazer que tipo de cidade? A minha preocupação é que esse
milhão de pessoas que vive com 10 mil dólares por ano deveria ter tanta
influência quanto o 1% mais rico. Eu chamo-lhe um “significante vazio” poque se
trata sobretudo de saber quem o reivindica e afirma. “É o meu direito que
interessa, e não o seu direito”. Envolverá sempre conflito.
Desde os anos 1980,
verificou-se uma onda mundial de privatizações de instituições públicas (escolas, transporte
ferroviário, água). Tal tem causado agitação nas pessoas de baixos rendimentos
que vivem nas cidades?
De certa
forma essa é uma das perguntas que tento colocar no livro. Por que é que não
fizemos nada em relação a isso? Por que é que não tivemos o nosso Maio de 68?
Por que é que não houve mais tumultos, dado o enorme aumento das desigualdades
na maioria das cidades norte-americanas e no resto do mundo? Começamos agora a
assistir a algum tipo de resposta com o OWS e movimentos noutras partes do
mundo. No Chile, os estudantes ocuparam as universidades, à semelhança do que
se passou nos anos 1960 contra as desigualdades que existiam na altura.
Eu não sei
bem porque não houve mais tumultos. Eu acho que tem a ver com o tremendo poder
que o dinheiro tem para comandar o aparato policial. Creio que vivemos
atualmente numa situação muito perigosa, porque qualquer forma de agitação é
suscetível de ser tratada como uma forma de terrorismo, dado o aparato de
segurança pós-11 de setembro. Temos visto em lugares como a Praça Tahrir e
noutros levantamentos urbanos, com ecos no Wisconsin no ano passado, que
existem sinais de resistência que começam a surgir. Há aqui um paralelo com o
que aconteceu nos idos de 1930. Aquando do crash da bolsa, em 1929, só
surgiram grandes protestos a partir de 1933, quando começou a emergir um
movimento de massas. Podemos estar a chegar a essa fase neste momento, pois a
depressão, a recessão, o que você quiser chamá-la, não acabou, existe ainda
desemprego massivo, as pessoas continuam a perder as suas casas e começam a
perceber que esta situação não é temporária. Esta é uma condição permanente.
Então eu acho que existe neste momento mais propensão para o aparecimento de
agitação de massas. Não é como em 1987, quando houve um crash, mas do
qual saimos num par de anos. Não é o que está a acontecer neste país.
Existe uma
diferença grande entre uma explosão espontânea de raiva, que não tem um
objetivo político, e uma resposta mais deliberada como a que vimos com o OWS.
Esta pretendia transmitir uma mensagem, colocar o tema da desigualdade social
na agenda política, e acho que foram muito bem sucedidos. Pelo menos, o Partido
Democrata fala sobre isso quando não o fazia há um ano atrás. Não era sequer
mencionado. Mas agora eles falam sobre o assunto, que começou a infiltrar-se na
campanha Obama, que de alguma forma captou essa retórica.
Porque é que a Comuna
de Paris de 1871 é importante para os movimentos de hoje?
Por duas
razões: A primeira é que é uma das grandes revoltas da história. É por isso
objeto de discussão e estudo por direito próprio. Outra razão é porque faz
parte do panteão do pensamento de esquerda. É interessante o facto de Marx,
Engels, Lenine e Trotsky, terem todos olhado para a Comuna de Paris como um
exemplo que necessitava ser aprendido, e até certo ponto seguido, como foi em
Petrogrado em 1905 e, mais tarde, durante a própria Revolução Russa. Por isso
constitui uma base de aprendizagem mas também de questionamento.
Como é que a
urbanização do mercado livre destruiu a cidade enquanto “comum”, em termos
sociais, políticos e de vivência quotidiana?
Sem romantizar
o que era cidade da década de 1920 e 1930, esta constitua uma concentração
relativamente compacta de população urbana governada por uma máquina política –
um poder político efetivo e concentrado. Ao longo do tempo, verificou-se uma
dispersão via suburbanização, originando uma cidade espalhada. Dispersou-se o
que é chamado de “gueto”, cada vez mais, de modo a que as comunidades de baixos
rendimentos não possuíssem níveis suficientes de concentração para a sua
auto-organização. Houve momentos em que foi possível estas reunirem-se, como é
o caso Rodney King em Los Angeles. Penso que a dispersão da cidade, a criação
dos subúrbios e de condomínios fechados, fragmenta a possibilidade de uma vida
política coerente e a ideia de um projeto político comunal. Conduz a muita
política “não no meu quintal”. As pessoas não querem viver perto de pessoas que
parecem diferentes, não querem migrantes nas redondezas – por isso as
sociabilidades mudaram. Eu acho que a subjetividade política que tem sido
criada nos subúrbios, nos condomínios fechados, é uma subjetividade fragmentada
em que ninguém vai ser capaz de abarcar a totalidade da cidade, a totalidade do
processo urbano como algo com que eles se deveriam preocupar.
Estão apenas
preocupados com o seu pedaço dela. O projeto político atual deveria ser o da
reconstrução do corpo político da cidade sobre as ruínas do processo de
capitalização.
Um termo que continua
a aparecer nas histórias do OWS é o de “precariado” (trabalhadores autónomos ou
não sindicalizados). Porque é que eles são importantes para os movimentos
radicais?
Eu não sou
muito apreciador do termo “precariado”. Em muitos casos, as pessoas que
produzem e reproduzem a vida urbana olham para a sua condição como de
insegurança, dado muito desse trabalho ser temporário, e são, em muitos
aspetos, diferentes dos trabalhadores fabris. A esquerda, historicamente,
sempre considerou os sindicatos e os operários como a base que protagonizaria
mudanças políticas. A esquerda nunca pensou nas pessoas que produzem e reproduzem
a vida urbana como sendo um fenómeno relevante. Aqui é que eu acho que o
exemplo da Comuna de Paris entra, pois se se olhar realmente para quem fez a
Comuna de Paris constata-se que não foram os operários fabris. Foram artesãos,
e a maioria da força de trabalho em Paris nessa época era precária.
O que se
verifica agora, com o desaparecimento de muitas fábricas é que não existe uma
classe trabalhadora industrial com a mesma dimensão e importância que existia
na década de 1960 e 70. Então a questão que se coloca é: o que constitui
atualmente a base política da esquerda? E o meu argumento é que essa base são
todas as pessoas que produzem e reproduzem a vida urbana. A maioria dessas são
precárias, muitas vezes em movimento constante, não são facilmente organizáveis,
difíceis de sindicalizar, são uma população itinerante, mas mesmo assim possuem
um enorme potencial de poder político.
O exemplo que
eu uso sempre é o do
movimento pelos direitos dos imigrantes de 2006. Uma boa parte da população
imigrante recusou-se a trabalhar por um dia, e Los Angeles e Chicago tiveram
que fechar, mostrando que eles possuiam um enorme poder. Deveríamos pensar
sobre este grupo da população. Isto não exclui o trabalho organizado, mas a
sindicalização no setor privado (em oposição ao setor público) não ultrapassa
9% da população. A realidade do trabalho precário é enorme. E se conseguirmos
encontrar uma maneira de organizá-los e se eles conseguirem encontrar novos
meios de expressão política, considero que poderão constituir uma influência
enorme sobre a forma como a vida urbana é vivida e estruturada numa cidade como
Nova Iorque, Chicago, Los Angeles ou qualquer outra.
Você afirma que “a
revolução dos nossos tempos terá que ser urbana.” Porque é que a esquerda é tão
resistente a essa ideia?
Acho que isso
é parte da disputa sobre como interpretar a Comuna de Paris. Algumas pessoas
afirmam que foi um movimento social urbano e como tal não constituiu um
movimento de classe. Tal pode ser rastreado à visão marxista/es- querdista de
que apenas os operários fabris poderiam criar um movimento revolucionário. Bom,
se não existirem fábricas suficientes ao nosso redor não poderá haver uma
revolução. Isso é ridículo.
Eu argumento
que devemos olhar para o urbano como um fenómeno de classe. Afinal, é o capital
financeiro que é o produtor atual da cidade, ao construir os condomínios e os
escritórios. Se quisermos resistir ao que estão a fazer, então temos que travar
uma luta
de classes, de facto, contra o seu poder. Estou muito preocupado com a questão:
como podemos organizar uma cidade inteira? A cidade é onde o futuro político da
esquerda se encontra.
Como é que os espaços
públicos podem ser transformados em lugares mais acessíveis?
Eu olho para
isso de forma simples – existe muito espaço público na cidade de Nova Iorque,
mas muito pouco onde se possa desenvolver atividades em comum. A democracia
ateniense teve a ágora. Onde é que podemos ir em Nova Iorque, onde é que temos
uma ágora para poder realmente falar. Isto é o que as assembleias procuraram
fazer, o que as pessoas do Parque Zuccotti estão a tentar fazer. Eles
construiram um espaço onde pode existir diálogo político. Por isso,
necessitamos de tomar o espaço público, onde, ao que parece, o público não é
permitido, e transformá-lo num espaço político comum, onde decisões reais sejam
tomadas, onde possamos decidir se é uma boa ideia ser construído um novo
edifício, um sem número de condomínios.
No outro dia,
passei por alguns parques, Union Square por exemplo, onde era possível realizar
eventos, mas muitos destes foram transformados em canteiros de flores. Então,
as túlipas possuem um espaço “comum”, mas nós não. Os espaços públicos são
atualmente totalmente controlados pelo poder político, de forma que estes deixaram
de ser comuns.
As políticas de
Bloomberg foram descritas como “construir como Moses com Jane Jacobs em mente”.
Como é que ele consegue reconciliar estas duas visões?
Significa que
se está a construir num estilo alto-modernista e de forma bastante implacável.
A administração Bloomberg lançou mais megaprojetos que Moses nos 1960, mas
tentou fazê-lo de forma a que apareça publicamente em defesa das comunidades
com uma estética semelhante a Jane Jacobs. Tal mascara as reais intenções
destes grandes projetos, com uma certa coloração ambientalista tam- bém.
Bloomberg é genuinamente, até certo ponto, um ambientalista. Ele fica muito
feliz se for possível construir um edíficio “verde”. Vimo-lo a reorganizar as
ruas em espaços “cicláveis” – desde que, é claro, elas não se tornem em lugares
de protestos massivos de ciclistas. Nesse caso, ele ficaria bastante infeliz.
Considera que existe
um movimento de resistência crescente a estas políticas urbanas de mercado
livre?
O que é
surpreendente é que se fizesse um mapeamento dos protestos à escala mundial,
dirigidos aos aspetos negativos do capitalismo, constatar-se-ia uma enorme
massa de protestos. O problema é que muitos deles são fragmentados. Por
exemplo, hoje fala-se dos protestos em torno dos empréstimos bancários a
estudantes. Amanhã, poderão existir pessoas a resistir à execução de hipotecas
das suas casas; outros poderão estar a organizar um protesto contra o
encerramento de um hospital, ou sobre o que se passa na educação pública. Neste
momento, a dificuldade é a de encontrar alguma forma de conectar todos estes protestos.
Existem algumas tentativas de criação de alianças, como “The Right to the City
Alliance”, e o “Excluded Workers Congress”, pelo que se começaram a desenvolver formas
de articulação. Mas encontra-se ainda no primeiro estágio de desenvolvimento.
Se for
possível agregar todos, encontrar-se-á uma enorme masssa de pessoas
interessadas em mudar o sistema, da raiz até aos ramos, pois este não satisfaz
as reais necessidades e desejos de ninguém.
O Movimento OWS
parece mesclar alguns dos assuntos que mencionou, mas ainda carece de uma mensagem
coerente. Porque é que a esquerda foi sempre resistente à ideia de liderança,
de hierarquia?
Considero que
a esquerda sempre teve um problema, um fetichismo da organização, uma crença de
que determinado tipo de organização é suficiente para um projeto particular.
Tal verificou-se no projeto comunista, onde seguiram um modelo
centralista-democrático, sem nunca se desviarem dele. E esse modelo possuía
algumas forças e certas fraquezas. Atualmente assistimos, por parte de muitos
elementos na esquerda, à resistência a qualquer forma de hierarquia. Eles
insistem que tudo deve ser horizontal e abertamente democrático. Na verdade não
o é, na prática.
Com efeito o
movimento Occupy Wall Street operou como um movimento de vanguarda [um partido
político na frente do movimento]. Eles negá-lo-ão, mas foram-no de facto. Eles
falaram em nome dos 99% mas não eram os 99%. Eles falaram para os 99%. É
necessário existir muito mais flexibilidade por parte da esquerda na construção
de diferentes tipos de estruturas organizacionais. Fiquei muito impressionado
com o modelo
El Alto na Bolívia, que era um misto de estruturas horizontais e hierárquicas
que se uniram para criar um organização política muito poderosa. Eu acho que
quanto mais cedo nos afastarmos de certos métodos de discussão, melhor.
As regras de
discussão que estão correntemente em voga são muito boas para pequenos grupos, onde
é possível realizar assembleias. Mas se se quiser criar uma assembleia que
inclua a totalidade da população de Nova Iorque, não é possível. É preciso
então pensar de que forma se poderiam realizar assembleias regionais, ou uma
mega-assembleia. De facto, o OWS possui um comité de coordenação. Eles são, no
entanto, muito reticentes em assumir realmente a liderança e a construção da
organização.
Considero que
os movimentos bem sucedidos sempre foram um misto de horizontalidade e de
hierarquia. Um dos mais impressionantes com que me deparei foi o movimento
estudantil chileno, onde uma das líderes era uma jovem mulher comunista [Camila
Vallejo], que era o mais aberta possível a tomar decisões “horizontais”, ao invés de
ser um comité central a decidir tudo. Mas ao mesmo tempo, quando a liderança é
necessária, esta deve ter exercida. Se começarmos a pensar nestes termos,
teremos, na esquerda, um sistema mais flexível de organização. Existem grupos
dentro do OWS que estão a convencer pessoas a aderir ao Partido Democrata de
forma a que este apoie a reivindicações do movimento, e caso não se verifique,
a lançar candidaturas contra este. Existe uma ala a fazer este tipo de coisas,
mas não são de todo a maioria.
No fim do seu livro,
não fornece muitas respostas, mas deseja abrir um diálogo sobre como sair deste
momento de multiplicação das crises do capitalismo e de desigualdade económica
generalizada. Acha que tal saída pode surgir do movimento Occupy?
Poderia
possivelmente. Se o movimento sindical se mover em direção a formas mais
geográficas de organização, e não apenas baseadas no local de trabalho, então
as alianças entre movimentos sociais urbanos e sindicatos poderiam ser muito
mais fortes. O que é interessante é que existe uma longa história de
colaborações deste tipo que foram bem sucedidas. Se o OWS desenvolver um
caminho de maior colaboração com o movimento sindical, então poderá surgir um
sem número de ações políticas possíveis. O meu livro é uma base para explorar
todas essas possibilidades, sem descartar nenhuma, pois não sabemos como será a
forma mais bem sucedida de organização. Mas existe, neste momento, um enorme
espaço para o ativismo político.
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*David Harvey,
geógrafo e teórico social, professor de antropologia no Graduate Center da City
University de Nova Iorque, e um dos 20 académicos das humanidades mais citado
de todos os tempos, dedicou a sua carreira a
explorar a forma como as cidades se organizam, o que elas fazem, quais as suas
principais realizações.
Entrevista de Max
Rivlin-Nadier. Tradução Hugo Dias
Fonte: Revista Vírus, site português de Portugal.
http://zelmar.blogspot.pt/2012/08/a-revolucao-urbana-que-vira.html
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