A rua é uma
construção humana, de uso comum e posse colectiva. Podendo ter diversas
configurações, podemos dizer, de forma simplista, que é ao mesmo tempo um local
de passagem e de permanência, permitindo a circulação de pessoas e veículos, o
acesso aos edifícios, aos espaços públicos e privados. Mas a rua é mais do que
isso - é um espaço multifuncional em constante reconstrução que desempenha um
papel social, económico e político moldado por quem o utiliza, sendo, desta
forma, uma expressão cultural da comunidade em que se insere.
Durante vários
séculos, as cidades e as ruas foram desenhadas de forma a proporcionar um
ambiente confortável, seguro e higiénico ao peão. Por isso mesmo encontramos
várias praças, largos, alamedas, um sem número de espaços públicos de qualidade
nos centros históricos das cidades. Pelo contrário, estes elementos encontram-se
ausentes no desenho dos espaços suburbanos, desertos de vida social, edificados
nas últimas décadas segundo uma lógica mercantilista do solo.
Com a generalização
do acesso ao automóvel, após a II Grande Guerra, assiste-se a uma mudança de
paradigma no que diz respeito à função da rua. O peão foi ostracizado no
processo de planeamento urbano, que se dedicou a construir uma cidade adaptada exclusivamente
a esta nova forma de mobilidade. A rua tornou-se mais larga, destruindo pelo caminho
tudo o que encontrasse - árvores, jardins, passeios, edifícios. Agora com
faixas de rodagem maiores, o automóvel tinha finalmente o espaço necessário
para dar uso a todos os cavalos. Quanto mais a rua crescia, mais automóveis e
mais rápidos, num processo sedento e imparável. E quando, finalmente, a rua se
assume como mera condutora de fluxos de tráfego, quando já não há árvores,
jardins, passeios, alamedas ou parques e já poucos se arriscam a percorrê-la a
pé, porque perigosa, a rua deixa de ser rua e transforma-se em estrada. A rua,
transformada em estrada, perdeu a sua componente social e política - não consta
que os automóveis sejam seres sociais ou agentes políticos - pois renega os
espaços que ela própria atravessa.
Nesta rua sequestrada
pelo automóvel, os espaços públicos urbanos, que se caracterizam como lugares
de trocas e vivências múltiplas, ou seja, lugares de vida pública, são negados
nos processos de urbanização. O processo de planeamento deixa de estar centrado
no indivíduo, para se centrar no indivíduo enquanto extensão do seu automóvel –
homoautomobilis – e a morfologia da rua, assim como os seus espaços
comerciais, residenciais ou de lazer, são desenhados à sua medida. Desta forma,
a rua torna-se numa simples infra-estrutura que nos permite ir de um ponto ao
outro, como um túnel no espaço, ignorando todos os interstícios que o moldam e
lhe dão forma, o meio em que se insere, as redes que o unem e os pontos,
símbolos e lugares que o caracterizam. Ignora, assim, a cidade.
Com esta alienação
dos lugares, os espaços da vida social retraem-se e deslocam-se dos espaços
públicos para os da esfera privada. Condomínios fechados, centros comerciais,
resorts, espaços monofuncionais em geral, são apenas alguns dos exemplos visíveis
desta antítese de cidade que vem sendo promovida um pouco por todo o lado e que
conduz a uma ausência de cultura urbana, de genius loci, ou seja, de
espírito da cidade, de sentido de comunidade.
A qualidade de vida
do peão, a sua liberdade e segurança têm que ser assumidos como direitos de uma
cidadania activa, considerando a rua como um espaço de vivência de todos e para
todos. A democratização do espaço público entre o automóvel e o peão é um assunto
transversal com diversas e profundas implicações. Ignorar este problema acabará
por resultar numa maior desigualdade social, numa segregação espacial e
funcional, mas sobretudo num completo desinteresse, uma ausência de
identificação/filiação com os lugares e respeito pelo espaço cívico. Porque um
lugar onde não vale a pena estar, não vale a pena cuidar.
in Correio de Albergaria