quarta-feira, 2 de abril de 2014

Democratizar a rua, resgatar a cidadania



A rua é uma construção humana, de uso comum e posse colectiva. Podendo ter diversas configurações, podemos dizer, de forma simplista, que é ao mesmo tempo um local de passagem e de permanência, permitindo a circulação de pessoas e veículos, o acesso aos edifícios, aos espaços públicos e privados. Mas a rua é mais do que isso - é um espaço multifuncional em constante reconstrução que desempenha um papel social, económico e político moldado por quem o utiliza, sendo, desta forma, uma expressão cultural da comunidade em que se insere.

Durante vários séculos, as cidades e as ruas foram desenhadas de forma a proporcionar um ambiente confortável, seguro e higiénico ao peão. Por isso mesmo encontramos várias praças, largos, alamedas, um sem número de espaços públicos de qualidade nos centros históricos das cidades. Pelo contrário, estes elementos encontram-se ausentes no desenho dos espaços suburbanos, desertos de vida social, edificados nas últimas décadas segundo uma lógica mercantilista do solo.

Com a generalização do acesso ao automóvel, após a II Grande Guerra, assiste-se a uma mudança de paradigma no que diz respeito à função da rua. O peão foi ostracizado no processo de planeamento urbano, que se dedicou a construir uma cidade adaptada exclusivamente a esta nova forma de mobilidade. A rua tornou-se mais larga, destruindo pelo caminho tudo o que encontrasse - árvores, jardins, passeios, edifícios. Agora com faixas de rodagem maiores, o automóvel tinha finalmente o espaço necessário para dar uso a todos os cavalos. Quanto mais a rua crescia, mais automóveis e mais rápidos, num processo sedento e imparável. E quando, finalmente, a rua se assume como mera condutora de fluxos de tráfego, quando já não há árvores, jardins, passeios, alamedas ou parques e já poucos se arriscam a percorrê-la a pé, porque perigosa, a rua deixa de ser rua e transforma-se em estrada. A rua, transformada em estrada, perdeu a sua componente social e política - não consta que os automóveis sejam seres sociais ou agentes políticos - pois renega os espaços que ela própria atravessa.

Nesta rua sequestrada pelo automóvel, os espaços públicos urbanos, que se caracterizam como lugares de trocas e vivências múltiplas, ou seja, lugares de vida pública, são negados nos processos de urbanização. O processo de planeamento deixa de estar centrado no indivíduo, para se centrar no indivíduo enquanto extensão do seu automóvel – homoautomobilis – e a morfologia da rua, assim como os seus espaços comerciais, residenciais ou de lazer, são desenhados à sua medida. Desta forma, a rua torna-se numa simples infra-estrutura que nos permite ir de um ponto ao outro, como um túnel no espaço, ignorando todos os interstícios que o moldam e lhe dão forma, o meio em que se insere, as redes que o unem e os pontos, símbolos e lugares que o caracterizam. Ignora, assim, a cidade.

Com esta alienação dos lugares, os espaços da vida social retraem-se e deslocam-se dos espaços públicos para os da esfera privada. Condomínios fechados, centros comerciais, resorts, espaços monofuncionais em geral, são apenas alguns dos exemplos visíveis desta antítese de cidade que vem sendo promovida um pouco por todo o lado e que conduz a uma ausência de cultura urbana, de genius loci, ou seja, de espírito da cidade, de sentido de comunidade.

A qualidade de vida do peão, a sua liberdade e segurança têm que ser assumidos como direitos de uma cidadania activa, considerando a rua como um espaço de vivência de todos e para todos. A democratização do espaço público entre o automóvel e o peão é um assunto transversal com diversas e profundas implicações. Ignorar este problema acabará por resultar numa maior desigualdade social, numa segregação espacial e funcional, mas sobretudo num completo desinteresse, uma ausência de identificação/filiação com os lugares e respeito pelo espaço cívico. Porque um lugar onde não vale a pena estar, não vale a pena cuidar.

in Correio de Albergaria

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