segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Reforma Administrativa do Poder Local

 
A “reforma” administrativa do poder local surge na agenda política como imposição consagrada no Memorando de Entendimento com a Troika. Esta imposição constitui uma ingerência intolerável no modelo de administração e de ordenamento do território nacional, com propósitos meramente economicistas, sem sustentação científica, conhecimento das diversas realidades locais e alheia às necessidades e anseios dos cidadãos. Estes factores motivaram um sentimento de rejeição transversal aos meios políticos, académicos, autárquicos e da sociedade civil.

As freguesias (e os municípios) são, numa grande área do país, os principais e até mesmo os únicos dinamizadores sociais e culturais locais, além de prestarem serviços essenciais à população, designadamente, nos transportes escolares, no apoio a desempregados, dinamização de cantinas sociais, serviço de postos de correios, de ambulâncias, de emissão de declarações electrónicas de IRS, junto de grupos com características de maior ruralidade e afastadas da sede de Concelho, a juntar às competências próprias legais das Freguesias. Além disso, com o recente surto de encerramento de escolas, esquadras, urgências e demais organismos do estado, as freguesias constituem a última face do poder estatal no Portugal profundo. Se nos centros urbanos a agregação de freguesias faz todo o sentido, pela evolução do tecido e continuum urbano, que tornam a divisão territorial obsoleta, nos espaços rurais esta constitui uma machadada no desenvolvimento e coesão social de cada lugar.

Esta “reforma”, que não passa de uma redução a régua e esquadro do total de freguesias, surge descontextualizada de todos os instrumentos de gestão territorial em vigor, inclusivamente dos planos directores municipais, actualmente em fase de revisão, comprometendo a sua eficácia. Simultaneamente, ocorre paralelamente ao processo de descentralização desencadeado com a criação das comunidades intermunicipais, quando deveria ser uma consequência deste. Ou seja, a reforma processa-se hierarquicamente no sentido inverso ao desejável, pois deveria partir dos níveis mais elevados, de administração central, regional, municipal e por último, sub-municipal.

Segundo uma nota informativa da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, a “reorganização administrativa territorial autárquica insere-se no âmbito da política reformista que o XIX Governo Constitucional pretende desenvolver em sede de poder local e do objetivo de garantir a consolidação orçamental e a sustentabilidade das contas públicas decorrente do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) assumido por Portugal com a Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu”. O grande desígnio economicista da “reforma” cai por terra quando nos deparamos com o peso das freguesias no orçamento de estado (<0,1%), principalmente quando comparado com a dívida acumulada de certas autarquias e do sector empresarial do estado. O valor poupado será até bastante inferior, se considerarmos que apenas um terço das freguesias serão extintas e destas, as menores, logo, as que recebem menos recursos financeiros. Facilmente chegamos a um valor inferior a 0,03% do orçamento de estado. Ou seja, menos de um euro per capita anual. A cegueira contabilística omite até o facto de algumas freguesias rurais serem sustentáveis sem qualquer transferência financeira do orçamento de estado, graças a receitas próprias, em particular as resultantes de rendas provenientes da energia eólica. A incoerência é ainda maior quando analisamos o vencimento dos órgãos eleitos, que serão superiores com a agregação de freguesias e consequente necessidade de trabalho a tempo inteiro; e o prometido reforço em 15% das transferência financeiras para as freguesias agregadas.

Os critérios subjacentes à futura divisão administrativa são em si um insulto ao ordenamento territorial e à correcta gestão do território, dos recursos e da sustentabilidade e coesão social. O governo aceita e lança as bases da reforma assente em critérios quantitativos, acríticos, sem atender às particularidades de cada caso. Impensável aplicar os mesmos critérios a freguesias de regiões tão díspares como o Minho e o Alentejo, ou uma região metropolitana e Trás-os-Montes. Os critérios demográficos e geográficos (?) são claramente insuficientes para analisar a especificidade de cada caso, principalmente quando assentes em critérios tão vagos como a densidade populacional (que coloca, por exemplo, Albergaria-a-Velha no mesmo nível que Coimbra) e a distância à sede de Concelho (distância absoluta (!), fazendo tábua-rasa do conceito de distância-relativa ou distância-custo). Os factores tidos em conta são incompreensivelmente estáticos e estanques, não enfatizando, por exemplo, questões como os movimentos pendulares ou sazonais, a estrutura da população ou a composição do tecido económico.

Esta "reforma" constitui também mais uma oportunidade perdida para a negociação definitiva dos limites concelhios, acabando com a loucura proporcionada pela CAOP e pela constante alteração dos limites administrativos.

A Proposta de Lei 44/XII atinge níveis de descaramento quando afirma que a reforma pretende a “preservação da identidade cultural e histórica, incluindo a manutenção dos símbolos das anteriores freguesias”, que as alterações “reforçarão a prestação do serviço público, aumentarão a eficiência e reduzirão custos” e irão “reforçar a descentralização e a proximidade com os cidadãos”.  Qual a sustentação científica para estas afirmações? Não se sabe.

A "reforma" é encarada como um fim em si mesmo, em vez de ser um meio para o desenvolvimento territorial homogéneo, ou seja, não preconiza um modelo de ordenamento territorial sustentável e equilibrado, não garante ganhos de eficiência e redução de custos, não traz nada de novo quanto a competências e recursos do poder local e acima de tudo, não respeita a vontade dos cidadãos.



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