A “reforma” administrativa do poder local surge
na agenda política como imposição consagrada no Memorando de Entendimento com a
Troika. Esta imposição constitui uma ingerência intolerável no modelo de
administração e de ordenamento do território nacional, com propósitos meramente
economicistas, sem sustentação científica, conhecimento das diversas realidades
locais e alheia às necessidades e anseios dos cidadãos. Estes factores
motivaram um sentimento de rejeição transversal aos meios políticos,
académicos, autárquicos e da sociedade civil.
As
freguesias (e os municípios) são, numa grande área do país, os principais e até
mesmo os únicos dinamizadores sociais e culturais locais, além de prestarem
serviços essenciais à população, designadamente, nos transportes escolares, no
apoio a desempregados, dinamização de cantinas sociais, serviço de postos de
correios, de ambulâncias, de emissão de declarações electrónicas de IRS, junto
de grupos com características de maior ruralidade e afastadas da sede de
Concelho, a juntar às competências próprias legais das Freguesias. Além disso,
com o recente surto de encerramento de escolas, esquadras, urgências e demais
organismos do estado, as freguesias constituem a última face do poder estatal no
Portugal profundo. Se nos centros urbanos a agregação de freguesias faz todo o
sentido, pela evolução do tecido e continuum urbano, que tornam a divisão
territorial obsoleta, nos espaços rurais esta constitui uma machadada no
desenvolvimento e coesão social de cada lugar.
Esta “reforma”, que não passa de uma redução a
régua e esquadro do total de freguesias, surge descontextualizada de todos os
instrumentos de gestão territorial em vigor, inclusivamente dos planos directores
municipais, actualmente em fase de revisão, comprometendo a sua eficácia.
Simultaneamente, ocorre paralelamente ao processo de descentralização
desencadeado com a criação das comunidades intermunicipais, quando deveria ser
uma consequência deste. Ou seja, a reforma processa-se hierarquicamente no
sentido inverso ao desejável, pois deveria partir dos níveis mais elevados, de
administração central, regional, municipal e por último, sub-municipal.
Segundo uma nota
informativa da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, a “reorganização
administrativa territorial autárquica insere-se no âmbito da política
reformista que o XIX Governo Constitucional pretende desenvolver em sede de
poder local e do objetivo de garantir a consolidação orçamental e a
sustentabilidade das contas públicas decorrente do Programa de Assistência
Económica e Financeira (PAEF) assumido por Portugal com a Comissão Europeia,
Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu”. O grande desígnio economicista da
“reforma” cai por terra quando nos deparamos com o peso das freguesias no
orçamento de estado (<0,1%), principalmente quando comparado com a dívida
acumulada de certas autarquias e do sector empresarial do estado. O valor poupado
será até bastante inferior, se considerarmos que apenas um terço das freguesias
serão extintas e destas, as menores, logo, as que recebem menos recursos
financeiros. Facilmente chegamos a um valor inferior a 0,03% do orçamento de
estado. Ou seja, menos de um euro per capita anual. A cegueira contabilística omite
até o facto de algumas freguesias rurais serem sustentáveis sem qualquer
transferência financeira do orçamento de estado, graças a receitas próprias, em
particular as resultantes de rendas provenientes da energia eólica. A
incoerência é ainda maior quando analisamos o vencimento dos órgãos eleitos,
que serão superiores com a agregação de freguesias e consequente necessidade de
trabalho a tempo inteiro; e o prometido reforço em 15% das transferência
financeiras para as freguesias agregadas.
Os critérios subjacentes à futura divisão
administrativa são em si um insulto ao ordenamento territorial e à correcta
gestão do território, dos recursos e da sustentabilidade e coesão social. O governo
aceita e lança as bases da reforma assente em critérios quantitativos,
acríticos, sem atender às particularidades de cada caso. Impensável aplicar os
mesmos critérios a freguesias de regiões tão díspares como o Minho e o
Alentejo, ou uma região metropolitana e Trás-os-Montes. Os critérios
demográficos e geográficos (?) são claramente insuficientes para analisar a
especificidade de cada caso, principalmente quando assentes em critérios tão
vagos como a densidade populacional (que coloca, por exemplo, Albergaria-a-Velha
no mesmo nível que Coimbra) e a distância à sede de Concelho (distância
absoluta (!), fazendo tábua-rasa do conceito de distância-relativa ou
distância-custo). Os factores tidos em conta são incompreensivelmente estáticos e estanques, não enfatizando, por exemplo, questões como os movimentos pendulares ou sazonais, a estrutura da população ou a composição do tecido económico.
Esta "reforma" constitui também mais uma oportunidade perdida para a negociação definitiva dos limites concelhios, acabando com a loucura proporcionada pela CAOP e pela constante alteração dos limites administrativos.
A Proposta de Lei 44/XII atinge níveis de
descaramento quando afirma que a reforma pretende a “preservação da identidade
cultural e histórica, incluindo a manutenção dos símbolos das anteriores
freguesias”, que as alterações “reforçarão a prestação do serviço público,
aumentarão a eficiência e reduzirão custos” e irão “reforçar a descentralização
e a proximidade com os cidadãos”. Qual a
sustentação científica para estas afirmações? Não se sabe.
A "reforma" é encarada como um fim em si mesmo, em vez de ser um meio para o desenvolvimento territorial homogéneo, ou seja, não preconiza um modelo de
ordenamento territorial sustentável e equilibrado, não garante ganhos de eficiência
e redução de custos, não traz nada de novo quanto a competências e recursos do
poder local e acima de tudo, não respeita a vontade dos cidadãos.
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