sábado, 26 de dezembro de 2015

No sábado havia festa


Alfredo, 76 anos

No sábado havia festa. Gaiteiro nos meus tempos de juventude, não perdia um baile por nada. Foi assim que conheci a minha esposa, na festa da terra dela, há muitos anos. Com saudades desses tempos, aperaltei-me, vesti o meu melhor fato e convenci a minha senhora a ir dar uma voltinha. Somos velhos mas ainda gostamos da animação e sempre se vê malta conhecida do nosso tempo, que só nestes dias de Verão por cá aparecem. Saímos de casa, dei-lhe a mão e fomos até à festarola, a pé, porque o carrito já o vendemos há muito, não lhe dávamos uso e o dinheiro faz falta para os medicamentos. Saímos, dizia eu, mas depressa percebemos que não seria fácil lá chegar. Passeios, quando os havia, estavam ocupados por automóveis. Desviar-nos deles não era tarefa simples. As minhas pernas já não dão para provas de obstáculos e a minha senhora, quase cega dos diabetes, esbarrava neles a cada passo. Apertei-lhe a mão ainda com mais força e seguimos pela estrada. O piso era melhor, mas agora os obstáculos moviam-se e vinham a grande velocidade, com os faróis ameaçadores nas ruas escuras. Ouvia-se “estes velhos só estorvam” enquanto nos colávamos aos muros para os deixar passar, ou “estes velhos não sabem ficar em casa, que vêm para aqui fazer?”, enquanto esperávamos para atravessar a rua no nosso passo vagaroso. Acabamos por lhes fazer a vontade. Aquela festa não era mesmo para nós. Demos meia volta, fomos para casa, pus um vinil a tocar no velhinho gira-discos e ficamos a dançar, como no dia em que nos conhecemos, sem estorvar ninguém.


Isabel, 37 anos

No sábado havia festa. Antigamente, fim-de-semana era sinónimo de discoteca, adorava dançar. Mas agora, com o garoto, não há tempo para nada. Nem tinha muita vontade de sair, só a “logística” necessária para levar o miúdo… mas os amigos tanto insistiram que acabei por ir. Nestas festas de Verão sempre nos encontramos todos e pomos a conversa em dia. Lá sentei o miúdo no carrinho e fui a pé, a festa não era longe – aqui nada é longe - e aproveita-se para fazer uma caminhada. Devia fazer isto mais vezes, pensei, mas depressa me lembrei porque não o faço. À medida que me aproximava do recinto, o passeio servia para tudo – automóveis estacionados, esplanadas e barracas de pipocas, brinquedos ou balões, ocupavam o espaço que devia ser meu. Segui pela estrada, como dezenas de outras pessoas, numa negociação difícil com quem circulava de automóvel e se mostrava impaciente. Dei por mim a pensar que era melhor colocar uma matrícula no carrito do garoto, tantas são as vezes em que sou obrigada a utilizar a estrada para nos deslocarmos, mas corria o risco de ter que pagar imposto de circulação. É melhor não arriscar. Chegada ao recinto, as coisas não melhoraram. O piso da entrada devia ter cem anos, em pedras irregulares, escorregadio, talvez apropriado para carroças mas não para pessoas. E eu de saltos, quem me manda ser vaidosa, talvez para a próxima leve calçado para montanhismo. Com tanta canseira para lá chegar, estar em pé tanto tempo, mais a antecipação de novo tormento na saída, acabei por ir cedo para casa e assim evitar a confusão. Mais uns metros de montanhismo e nova prova de perícia por entre automóveis e vendedores ambulantes. Cheguei a casa exausta. Dizem que amanhã a festa continua. Para mim, talvez para o ano.


Paulo, 28 anos

No sábado havia festa. Combinamos sair, a malta do costume. Alguns foram ter comigo e ajudaram-me a entrar no carro. Ainda têm medo quando sou eu a conduzir, mas disfarçam. Na primeira tentativa para estacionar no lugar que me está reservado, deparo-me com o cenário habitual, com um automóvel sem dístico já a ocupá-lo. Há gente que ainda não percebeu que a estupidez não é deficiência… Fui procurar outro lugar, mais longe. À segunda tive mais sorte e lá estacionei. Ajudaram-me a sentar na minha amiga inseparável, a subir o lancil para o passeio, depois a descer para atravessar a passadeira e subir novamente para o passeio do outro lado da rua. Passeio é uma força de expressão, ou porque são estreitos e desconfortáveis para circular com a cadeira, ou porque algum (ir)responsável se lembrou de colocar um sinal ou poste de iluminação mesmo a meio, ou porque não passam de buracos com calçada à volta. A cadeira é automática mas tenho que lhe colocar umas rodas todo-o-terreno. Quando o passeio deixou de o ser para dar lugar a estacionamento, não tive outra opção e segui pela estrada. Chegado ao destino, vejo que a minha vida não ficou facilitada porque o espaço foi pensado para todos menos para mim. Dizem-me que a entrada para deficientes é pelas traseiras. Que dignificante… Disfarço o incómodo e lá fui procurar a “minha” entrada. Finalmente, consegui aceder ao recinto da festa e atravessei todo o espaço para procurar o pessoal. No final desta epopeia, a vontade para me divertir já não era muita, mas a malta tentava animar-me e iam-me trazendo bebidas, já que não conseguia chegar aos balcões dos bares. Entretanto, preciso de utilizar a casa de banho. Sem surpresa, constato que não há nenhuma adaptada à minha condição. Foi a gota de água. A conclusão óbvia é que aquele espaço é deficiente e não me quer lá. Resigno-me, despeço-me de todos e tento fazer o caminho inverso. Sem sucesso. Tive que pedir ajuda. Nesta altura, já só rezava para que nenhum esperto me tivesse bloqueado a porta do carro, como tantas vezes acontece. As minhas preces foram ouvidas, agradeci a quem me acompanhou, eles lá voltaram para a festa e eu fui para casa.


Vítor, 43 anos

No sábado havia festa. Já saí tarde de casa e como sempre acontece quando se tem pressa, é nestas alturas que aparecem os atadinhos a conduzir a vinte à hora. Era gente que nunca mais acabava a dirigir-se para lá, uns a pé, outros de automóvel, às voltas. Procurei um lugar para estacionar o mais próximo possível da entrada, mas não havia. Dou uma volta, mas com tantas pessoas a pé não era fácil, ainda por cima andava tudo no meio da estrada. Fui procurar mais longe, sigo por uma rua e nada, vou por outra e a mesma situação. Entretanto uma fila de automóveis e o pára-arranca. Estava já para buzinar quando percebi que era um rapaz com uma cadeira de rodas que ia no meio da estrada. Mais uma volta. As pessoas no meio do caminho, os velhos que não se desviam, os miúdos a correrem sem noção do perigo dos automóveis. Mais uma volta. Tentei evitar, mas tive que parar na passadeira para deixar passar a Isabel com o garoto (mas quem é que traz uma criança para este caos?). Logo atrás, os velhos outra vez, a atravessar devagarinho e eu cada vez mais atrasado – os meus pais é que iam gostar de ir à festa, mas já é muita confusão para eles. Outra volta e lugar para estacionar nem vê-lo. Sinceramente, não sei para que pago tantos impostos do automóvel, se nem tenho um lugar para estacionar quando preciso. Afinal onde estão os meus direitos? Estava já a ponderar ir deixar o carro em casa e voltar a pé quando descobri uma brecha e estacionei. Foi em cima do passeio, mas felizmente a polícia é compreensiva nestes dias. Ainda demorei uns minutos até chegar ao recinto e com tudo isto perdi metade do concerto.

Nota: os relatos deste artigo são mera ficção. Qualquer semelhança com a realidade não é coincidência.

in Correio de Albergaria, nº 77, III Série

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